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Foi com a mala cheia de sonhos que parti para Lisboa. Fazer uma viagem sozinho pelo Benfica é algo que acaba por nunca acontecer, porque há sempre mais gente a fazer o mesmo que nós. Entrar num avião e ver tanta gente equipada à Benfica logo de madrugada já nem sequer é surpreendente, é a coisa mais natural do mundo. Ia à espera de ser feliz, acreditava muito que o seria, mas não imaginava quanto. E se fora do estádio companhia já sabia que teria, dentro dele achei que veria o jogo sem ela. Parvoíce minha, claro, tal não é possível, estamos a falar do Benfica. Fiquei no meio de dois grandes benfiquistas, também eles de viagem, de longe, cantando juntos, que me ofereceram cervejas, que me abraçaram nos festejos como se fôssemos amigos de longa data, que me abraçaram sem festejos na mesma só porque sim, porque era o Benfica, porque não há irmandade igual, porque estávamos todos em casa, entre família. Não sei o nome deles, mas não me devo esquecer das suas caras tão cedo, afinal foi com eles que testemunhei e festejei o épico 35.
Já tive momentos de grande euforia na Luz, mas nunca senti felicidade tão genuína como no primeiro e segundo golo. No segundo, percorreu-me um tal sentimento de realização que parecia que ia desmaiar. Já via estrelas, não sei se de gritar para além daquilo que seria recomendável, se de alegria, se de alívio, se de tudo isso junto. Foi fantástico ver aquela gente toda descomprimir um pouco e começar finalmente a sentir-se campeã, depois de uma época tão insuportavelmente desgastante. Todas as pessoas com quem falei diziam que já só queriam que aquilo acabasse depressa. O apito final deixou isso claro, pouco tempo depois de soar e de se ouvir a grande celebração, já poucos tinham força para mais, parecíamos maratonistas acabados de passar a meta, deitados no chão a ofegar.
A época foi novidade pela quantidade, variedade e regularidade com que as dificuldades e desafios se foram apresentando. Ninguém estava preparado para tanto jogo sujo, tanta baixeza e falta de respeito como aqueles de que fomos vítimas toda a época. Creio que nem a Estrutura do Benfica estava preparada para isso, e como tal muito menos estariam os adeptos. Contra um rival capaz de abdicar da honra para alcançar a glória e que acabou sem glória e honra muito menos, fomos capazes de manter o nível e conseguir alcançar a glória sem beliscar a honra, que é algo que nos deve encher de orgulho a todos.
Tentando individualizar os méritos o menos possível, quero antes de mais realçar a existência de uma criatura mitológica que afinal provou existir e cujos méritos são cada vez mais incontornáveis. Uma tal de Estrutura, cada vez mais feita de Nós, de Todos e não de Eu. E isto acontece quer no discurso da equipa técnica, quer no discurso da direção, como deve ser.
Rui Vitória tornou-se um caso sério de popularidade entre os benfiquistas, não apenas porque ganhou, mas pela forma como ganhou. Não há mais à Benfica do que o seu percurso desde que chegou. Conquista o seu lugar e a confiança de todos a pulso, à custa do seu trabalho, do seu mérito, sem qualquer tipo de campanha artificial, sem mimos. E em gestos como aquele que teve com Paulo Lopes se percebe que a sensibilidade de um treinador vai muito para além da parte meramente técnica. Enorme em toda a linha.
Na linha de Rui Vitória, aliás, coloco Jardel, que quero absolutamente individualizar, por obedecer ao mesmo padrão. Há algum jogador com um percurso mais à Benfica do que Jardel? Não creio. Mérito absoluto na forma como passa de um jogador dispensável a um jogador de alta fiabilidade, um autêntico capitão, às portas de se tornar um imortal do clube. Uma palavra também para Renato, que, a certa altura da época, graças à sua qualidade, irreverência e liderança, levou a equipa para a frente e, mesmo sendo vítima de uma campanha baixa e reles, foi capaz de não perder o foco e a confiança, acabando já mais tarde por ceder, mas ao cansaço. E, como não poderia deixar de ser, Jonas. Mais do que um goleador de exceção, um futebolista de exceção, que joga, faz jogar e faz o futebol parecer algo muito simples. Uma técnica sublime, mas uma leitura de jogo melhor ainda, é um jogador que me enche completamente as medidas. Ficarei bastante preocupado se o vir sair no fim da época. Outros jogadores foram essenciais, numa ou noutra fase da época, com maior ou menor regularidade, como Nélson Semedo (e mesmo Gonçalo Guedes), Victor Lindelöf, Eliseu, André Almeida, Fejsa, Samaris, Pizzi, Nicolás Gaitán, Mitroglou, Raúl, Júlio César, Ederson, mas creio que Jardel, Renato e Jonas merecem uma palavra especial.
Agora é ganhar a Taça da Liga, que quero e adoro ganhar. E começar a pensar no 36. Será muito pedir que o Benfica chegue primeiro aos 40 títulos nacionais do que o Sporting aos 20 e o FC Porto aos 30? Talvez sim. Ou talvez não. Sonhar não custa.
Já passaram uns dias, outro jogo está à porta, mas o efeito da noite europeia continua presente. Continuo extasiado com tudo aquilo, adormeço e acordo com o desfile daquelas imagens, não tivesse o Benfica essa capacidade única para me tornar numa criança de novo. Ver o Benfica vencer uma equipa de topo na prova máxima do futebol europeu, fora de casa, com a garotada a dar chocolate e a decidir o jogo, jogando com o histórico branco da camisola alternativa mais bela das últimas décadas, é algo que me acompanhará durante longos anos. Foi tudo perfeito, o cosmos começa finalmente a querer colocar as coisas no sítio para que este sonho se concretize.
Mas desta vez quero particularizar os elogios, porque há um jogador que me enche as medidas, como eu já não me lembro de ver ninguém no Benfica conseguir.
É moda hoje dizer-se que Gaitán é o jogador mais talentoso da equipa. Ora, como não confundo talento com valor de mercado, que depende sempre da idade, sou obrigado a discordar. Gaitán é um extraordinário desequilibrador, mas não está no mesmo patamar de Jonas. Não, porque seja limitado de alguma maneira, mas porque Jonas está num patamar só dele, no que à capacidade intelectual para jogar futebol diz respeito. Tudo bem, eu sei que Gaitán também é o melhor jogador do mundo, tal como o Júlio César também é, e que a bola de ouro de Semedo em 2018 é uma mera formalidade, mas Jonas é o melhor do mundo mais um bocadinho. Na verdade, Jonas será o melhor do mundo mesmo quando tiver 80 anos, apenas não terá a capacidade física necessária para acompanhar o intelecto, o que dará a oportunidade a outros de o serem. Outros que até poderão ser mais dotados tecnicamente, mais rápidos, mais fortes, mas nunca terão o talento do Jonas para pensar um jogo de futebol. É impossível.
A maioria dos seus jogos são Tratados vivos, em movimento, sobre como bem jogar futebol, sobre a leitura de jogo no futebol. Não são os pés de lã que mais impressionam, o talento puro para tratar a bola com conta, peso e medida em todo os seus gestos técnicos, ou o facto de fazer golos com o pior pé que outros não fariam com o melhor, ou a capacidade para desequilibrar no jogo aéreo mesmo não tendo a envergadura física de outros, ou a responsabilidade que considera ter e assume para entreter as bancadas, ou o facto de dançar entre os rivais, dando muitas vezes a sensação que irá perder a bola, mas sem que tal acabe por acontecer. O que mais impressiona com Jonas é a realização do seu pensamento, é sentirmos que os recursos técnicos são o acessório, a consolidação daquilo que realmente o torna especial: a inteligência.
Jonas é o jogador que se ri daquilo que se ensina aos miúdos, do 1-2, de primeiro receber e depois virar. Com o Atlético, equipa exemplar na forma como pressiona com agressividade, perdi a conta às vezes que tirou adversários do caminho abdicando da recepção, com uma simples simulação de corpo. Antes da bola lhe chegar, já sabe como vai tirar o adversário do caminho, sem sequer lhe tocar. A visão periférica é de outro mundo, basta observar a rapidez com que em curtíssimos espaços de tempo olha para um e outro lado, para perceber que está sempre ao corrente de tudo o que se está a passar à sua volta. É daqueles jogadores que vai com a bola num 3 para 3 e não cede à tentação de libertar rapidamente a bola no colega, por receio que lhe chamem egoísta, é capaz de perceber que a melhor jogada é usar o apoio dos colegas para terminar a jogada sozinho, peçam as bancadas o que pedirem. Jonas rima com decidir bem, com ler bem.
Depois há algo ainda mais fascinante e que acontece com poucos jogadores. Na bancada ou na televisão, temos o hábito de dizer "faz isto", "faz aquilo", "dá agora", "olha aquele solto na esquerda", "não tens hipótese, dá atrás", etc, e há jogadores que parecem ter uma facilidade superior para perceber à altura do relvado aquilo que o adepto está a ver de uma perspectiva muito mais favorável. Jonas é um desses jogadores, mas leva-o para outro grau, consegue arranjar soluções que o comum adepto, lá de cima, nem sabia que existiam, nunca as viu, daquelas que nos apanham tão de surpresa que até provocam gargalhadas. O futebol de Jonas, de uma ponta à outra, é prazer puro, só se pode ver com um sorriso na cara. Elegância, criatividade, eficácia, garra. Jonas é o protótipo do futebolista ideal.
Como se não bastasse, é o tal jogador à Benfica que idealizo. Não o jogador à Benfica a quem basta correr muito e ser viril para assim ser considerado, mas o jogador que está ao nível do Benfica em todos os sentidos: no espírito de sacrifício, mas também no talento, no saber estar, na percepção de onde está, na consciência do carácter especial do clube que representa, na epicidade com que sabe ser ídolo de quem ama o Benfica. Jonas é o espírito de sacrifício de Luisão, o talento de Aimar, o saber estar de Júlio César, a epicidade de Cardozo. Jonas é um ídolo à antiga, é o Paneira moderno. Até de botas pretas joga, veja-se bem o quão raro é no futebol moderno. Jonas é o tipo que de meias em baixo, e com aquele andar de rei deste mundo e de todos os outros, ajeita o material ao ser substituído na maior das calmas. Jonas questiona a minha sexualidade, não há limite para o nível da sua epicidade. Por tudo isso, é a grande figura desta equipa, a mais memorável, a mais especial, a mais Benfica.
Durante as últimas épocas, discutiu-se muito um suposto fim de ciclo no futebol português e uma consequente passagem de testemunho na hegemonia do mesmo. Creio que a generalidade dos benfiquistas concordarão comigo se disser que é demasiado cedo para concluir essa passagem de testemunho, mas não posso dizer o mesmo em relação ao fim de ciclo. O fim de ciclo é um dado adquirido. O Benfica, com os sucessos das últimas épocas, causou um efeito de tal forma negativo na moral do FCP que a fórmula que esteve na base de décadas de sucesso parece ser já coisa do passado. Cada acto da nova gestão desportiva se traduz na assunção de que já não se consegue derrotar o Benfica usando a estratégia de sempre. O FCP da "estrutura", o exemplo europeu de gestão desportiva, que comprava barato para vender caro, que dominava o mercado nacional, que construía equipas à volta dos símbolos da sua mística, é coisa do passado, acabou. O Benfica ainda não consumou um novo paradigma, mas consumou o fim do anterior. O principal rival é hoje um clube vergado à força das circunstâncias, obrigado a seguir um rumo que talvez nem os próprios dirigentes saibam muito bem qual é e muito menos saberão os seus adeptos. Ganhando ou perdendo, o clube mudou drasticamente, restando apenas saber com que consequências para o seu futuro. É que o dinheiro está a aparecer de algum lugar e quem lá o coloca não ficou rico por caridade.
Maxi Pereira é um excelente exemplo da mudança, por todas as razões, e tão pouco é preciso falar da idade. Em primeiro lugar, é um jogador que valeria sempre mais no Benfica do que valerá no FCP, por tudo o que os adeptos acreditavam que ele significava, por ser sub-capitão, ter margem para errar e consequentemente jogar com um almofada de confiança que em nenhum outro clube poderia ter. O Benfica seria o único clube que aceitaría vê-lo envelhecer com dignidade, sem o tratar como mercadoria ao primeiro sinal de falta de pernas. Em segundo lugar, nem mesmo no Benfica justificaría o salário que irá receber no rival.
Mas claro que o FCP não olhou para as coisas desse modo apenas, percebeu que a força desta acção estaría mais do ponto de vista da nossa destruição do que da sua construção. É uma jogada que procura resultados pela negativa, não pela positiva. Gastar-se-à muito para ganhar algo que será sempre inferior àquilo que o rival perderá. Mais do que uma contratação, é uma tentativa de enfraquecimento do rival. Deste ponto de vista, nem é algo novo, já que viver em função da rivalidade com o Benfica, sempre caracterizou os portistas - daí que quando o clube ganha, não se se celebre o portismo, com genuina alegria, mas se celebre acima de tudo o ódio, a negação, do Benfica, dos mouros, da capital, do centralismo - mas ceder ao ponto de contratar um dos jogadores mais atacados pelos adeptos e pela própria máquina de propaganda do clube, um jogador que poucas semanas antes aconselhou os azuis a lembrarem-se da forma menos clara como têm ganho os seus campeonatos, mostra bem o grau de desespero a que se chegou e o quão irrelevante a famosa mística se tornou para os responsáveis do clube.
E com isto, queria sobretudo chegar aqui: o Benfica parece seguir o seu rumo sem ceder a este tipo de postura, não alimentando o clima de guerrilha. Pecou em não ter retirado de imediato a sua proposta de contrato quando Maxi decidiu aproveitar a fraqueza dos benfiquistas com a ferida chamada Jesus ainda aberta e fazer chantagem nos jornais com uma possível ida para os rivais. Tirando isso, a postura tem sido basicamente inatacável. O Benfica tem-se mostrado convicto nos seus objectivos, no seu rumo e nos seus métodos, que, por sua vez, nada têm a ver com ataques aos rivais ou retribuições de alfinetadas. Esta pré-época tem sido um ataque feroz ao Benfica, a meu ver pior que o verão quente de 93, porque é um ataque que vem de ambos os lados, mas temo-nos aguentado como se exige a um clube com a nossa dimensão. O Benfica deve ser isso, vivendo pela positiva, com a preocupação primária de se construir e não destruir os outros , com um rumo claro que jamais coloque em causa a independência e sustentabilidade futura do clube. Pelo Benfica de hoje e de amanhã. A nossa força não é a de sermos os mais ricos, nunca foi. É que, como diria um tal de Cosme Damião, "No imediato o dinheiro vence a dedicação. No futuro, a dedicação goleia o dinheiro". O primeiro passo para voltarmos a ser o Benfica nos relvados é sermos o Benfica fora deles. Assim tem sido e que assim continue.
Se Maxi decidiu tornar-se no maior traidor da história do Benfica, odiado para sempre pelos benfiquistas e visto por todos como não mais do que um qualquer mercenário, outros jogadores souberam deixar a sua marca no coração dos benfiquistas... até ao fim dos tempos e mais além:
Pablo Aimar, um dos jogadores mais elegantes da história do futebol, pendurou as pantufas. Porque era de pantufas que jogava. Quando recebia com a ponta do pé aquelas bolas longas vindas das suas costas, como se de um passe de 5 metros de tratasse, como fez naquele maravilhoso golo à Académica. Quando conduzia a bola gesticulando para os colegas ao mesmo tempo que bailava em frente aos adversários para os tirar do caminho, como naquele brilhante golo ao Paços de Ferreira. Quando brincava aos cabritos, recepções e golos sem deixar a bola cair, como naquela memorável noite com o Setúbal na Luz. Quando reinventava o significado dos passes de letra, com aquele toque de bola só dele, como fez em Guimarães. Tenho orgulho em dizer que comprei a camisola com o nome e número de Aimar quando na altura se dizia que poderia estar de saída do Benfica. Para mim não importava, porque Aimar, esse sim, é o protótipo daquilo que considero o jogador à Benfica: abnegado, dedicado, corajoso, talentoso e leal. Como Coentrão, como Paneira, como Rui Costa, como teria sido Bernardo, se o tivessem deixado. Não chega correr muito e ser viril para ser um jogador à Benfica. Pelo menos para mim.
Mais raro do que o talento de Aimar, só a humildade com que vivia esse talento, genuinamente. Depois de Rui Costa na minha adolescência e juventude, Aimar é provavelmente a minha maior paixão futebolística, o jogador que mais admirei, que mais me fez sonhar ser um determinado jogador do Benfica, que mais me tornou de novo menino. Jogador de um carisma difícil de explicar, Aimar era simplicidade e classe, humildade e categoria. E tudo isso, Aimar foi-o no Benfica, clube pelo qual sempre demonstrou uma admiração profunda e sincera. O único consolo, meu e de tantos benfiquistas, será vê-lo servir o Benfica fora das quatro linhas. Porque sabemos que será altamente competente seja qual for a área que agarrar? Não, porque é dos nossos e estará perto. Porque é o Aimar, mais do que um jogador à Benfica, uma figura à Benfica.
Ver o Benfica ser campeão deixa-me imensamente feliz, com um sorriso parvo que passeio pela rua nos dias seguintes, massaja-me o ego, envaidece-me, mas... não me realiza totalmente. Não faço parte do grupo de adeptos que parece perder a ambição e o sentido crítico se o título estiver nas nossas mãos. Não consigo dizer que ninguém faz falta só porque somos campeões nacionais, ou porque fizemos a dobradinha, ou o triplete. Como se tivéssemos concretizado tudo aquilo que o potencial do Benfica poderia permitir, como se nada restasse para ganhar. Não encerro aí o potencial ganhador do Benfica. Não empequeneço o Benfica a esse ponto.
O primeiro Benfica que conheci, aquele que fez de mim benfiquista, que fascinava mais do que qualquer outro, era uma potência europeia. Uma verdadeira equipa de topo europeu, de Meias-Finais e Finais de Liga dos Campeões. Uma potência europeia na verdadeira acepção da palavra, na história passada, mas também na recente, no estádio, na qualidade da equipa, na mística, na alma, na cultura e identidade do clube. Esse Benfica, por razões várias, foi-se desvanecendo com os anos. Felizmente e pouco a pouco, tem recuperado muito do que foi perdendo, mas acaba sempre a pairar no ar um certo derrotismo antecipado relativamente a outros voos, algo que me incomoda bastante. O destino parece ter-se cumprido, batemos no tecto dos sonhos.
O Futebol mudou bastante desde a Lei Bosman, todos sabemos, prejudicando sobretudo os clubes de futebóis periféricos, como o nosso. Quer isto dizer que o Benfica jamais poderá jogar o mesmo jogo que os outros grandes europeus que têm a sorte de fazer parte de ligas de topo? Sim, quer. Quer dizer, então, que o Benfica jamais poderá recuperar o seu histórico estatuto europeu? Não, não quer. Qual será então o segredo para dar a volta ao estado de coisas actual, para nos reinventarmos?
O segredo será precisamente o de não jogar o mesmo jogo que esses clubes, ser criativo, inverter a estratégia. A criatividade aqui necessária não reside em encontrar outras soluções, reside no absoluto comprometimento com que se deve colocar em andamento a única solução possível: a Formação. À qual junto os valores nacionais em geral, que nasceram a aprender o significado e a importância do Benfica, em inúmeros casos tão benfiquistas como nós, desde tenra idade. Noutros, cedendo ao benfiquismo já em idade adulta, como Carlos Manuel ou Simão, mas sendo parte integrante da consciência colectiva portuguesa, desde que nasceram.
Antes de mais, para que não me interpretem mal e porque nenhuma mensagem sobreviverá ao preconceito se não o disser, devo deixar bem claro que quero, como sempre quis, qualidade no Benfica, venha ela de onde vier. Não quero que deixemos de apostar nos Gaitan's, Salvio's, Samaris's, Jonas's ou Júlio César's, não deve estar aí a janela de oportunidade dos jovens da casa, deve estar sim no lugar de outros jogadores de qualidade mais duvidosa, que continuam a chegar todos os anos em quantidades inaceitáveis.
Falar de formação é, hoje em dia, cada vez mais complicado. Pelo preconceito e pelas frases feitas, cujo sentido real é diminuto. Existe uma espécie de lei universal do futebol, que inexoravelmente determina não se poder ganhar apostando na formação. Afinal de contas, repete-se, o clube português que nas últimas décadas mais tem apostado nos jogadores da casa não tem conquistado grande coisa. Diz-se uma vez, duas, dez, e, quando damos por ela, nem o questionamos. Criamos automaticamente um quadro mental a que recorremos sem pensar: Formação = Perder. Como se o Sporting tivesse ganho apenas 2 campeonatos nos últimos 33 anos porque foi apostando nos Figo's, Ronaldo's, Quaresma's, Moutinho's, Viana's ou William's. Terá sido realmente esse o problema do Sporting? Não terá sido a falta de qualidade, sobretudo de quem vinha de fora, que acabou por obrigar o clube à aposta excessiva em jogadores da casa, mesmo quando não tinham qualidade para tais andanças? Como se a pior classificação da história do clube não tivesse ocorrido num dos períodos em que mais se gastou dinheiro para trazer jogadores estrangeiros “feitos”. Criou-se o mito de que a culpa é da formação, quando, em todos estes anos, foi o último dos problemas do Sporting. Foi, antes, inúmeras vezes a única solução para compensar de algum modo a falta de qualidade generalizada dos plantéis.
É bom lembrar que o futebol português venceu quatro Taças/Ligas dos Campeões e que nesses quatro triunfos predominavam jogadores da casa/nacionais. Eram equipas que incoporavam na perfeição a cultura do clube que representavam. Tudo aquilo tinha um significado que os jogadores vindos de fora não poderiam conhecer e/ou respeitar na sua total dimensão. O último Benfica europeu, o de 88 e 90, mesmo não ganhando, repousou no mesmo princípio.
Depois temos o exemplo moderno supremo que prova definitivamente aquilo que uma aposta sustentada na formação pode fazer por um clube. O Barcelona. De todos os gigantes europeus é aquele que mais aposta na formação e é tão só o clube mais vitorioso do século XXI. O mito de que "ninguém ganha nada a apostar na formação" ganha toda uma nova dimensão de ridículo quando pensamos no Barça. É escandaloso o número de jogadores da casa com os quais os catalães acabaram a vencer múltiplas vezes a prova máxima de clubes do futebol mundial, os quais custaram valores irrisórios ao clube, comparativamente aos respectivos titulares dos seus rivais directos.
E é chegando aqui que cada palavra deve ser usada com todo o cuidado, os diversos preconceitos já fazem fila para ridicularizar tudo isto. Como é óbvio, jamais poderemos lutar de igual para igual com o Barça, seria idiota da minha parte achar que sim. Por muito que se apostasse nos maiores talentos da casa, faltaria sempre a capacidade financeira para os complementar com os Dani Alves’s, Rakitic’s, Neymar's e Suarez's. A questão aqui é que a única forma de, pelo menos parcialmente, pelo menos nalgumas posições, nos equipararmos à qualidade dessas equipas é apostando nos jogadores que hoje custam pouco mais que zero e são nossos até decidirmos que sejam nossos e que amanhã teriam um valor de mercado insuportável se tivéssemos que os ir buscar fora de portas. Depois há outro impossível, claro: poderíamos segurar esses talentos anos suficientes para ganhar quatro títulos europeus? Não, num mercado periférico seria impossível. Mas não deve nem pode ser impossível segurar uma geração os anos suficientes para que se faça uma gracinha uma vez, pelo menos. Não digo, duas, três ou quatro. Digo uma.
A juntar a isso, que já não é pouco, há um detalhe fundamental: a identidade, a mística, a alma. É humano e não há volta a dar, só um jogador que ama um clube desde a infância poderá senti-lo ao ponto de colocar nalgumas ocasiões os objectivos e projectos desportivos do clube acima do seu estatuto de "profissional", termo que hoje, na minha opinião, tantas vezes utilizamos para encobrir o que não passa de meras lacunas morais. Da formação pode sempre sair um Paulo Sousa ou Manuel Fernandes, os tais “profissionais”, mas só da formação poderá sair um Rui Costa ou Bernardo, jogadores a quem os olhos brilhavam só de falarem no Benfica, porque a isso estavam habituados desde crianças, porque iam para a cama sonhando que o terceiro anel os idolatrava. Só a formação nos pode oferecer talentos desta qualidade, virtualmente a custo zero, sem que acabem por fazer os possíveis para deixar o clube à primeira proposta que tenham de um clube mais poderoso. O David Luiz ou o Enzo, por exemplo, gostavam muito do Benfica, até ao dia em que se lembraram que eram “profissionais” e não olharam a meios para nos deixar. Não há projectos desportivos a médio prazo que resistam com este tipo de mentalidade.
O Futebol é um negócio, mas não é só um negócio, urge compreender-se isto de uma vez por todas. Ou melhor, poderá ser um negócio tanto mais rentável quanto mais tiver como objecto central a identidade, a mística, o emblema, o sentimento... Uma equipa plena de identidade benfiquista trará necessariamente para o clube um capital desportivo-financeiro superior àquele gerado por uma equipa de meros profissionais, sem a devida ligação às bancadas. A noção de identidade deve andar de mão dada com a noção de profissionalismo. Não devem substituir-se, devem complementar-se. A equipa e a bancada não podem viver em mundos separados. Só assim um clube sem os meios dos tubarões europeus poderá fazer-lhe frente de alguma maneira.
E aqui regresso ao início do texto. Enquanto este Benfica não se realizar, o seu potencial continuará inexplorado. É um clube demasiado grande, que gera demasiado sentimento, para que um projecto deste tipo possa ficar guardado numa gaveta, sob o pretexto de que competir internamente nos sacia e a Liga dos Campeões serve apenas para participar ou, no máximo dos máximos, ser eliminado nos Oitavos ou Quartos-de-Final, não estando nem aí para isso, pois os maiores da nossa aldeia contiuamos a ser nós. Não foi com esse tipo de pensamento, pequeno e amedrontado, que nos tornamos outrora num colosso europeu. Ganhar internamente não é um sonho, é um objectivo claro, quase uma obrigação. Ganhar, ou perto disso, externamente, isso sim, é um sonho. E para os sonhos não se deve procurar desculpas para não os concretizar, deve encontrar-se o caminho para lhes dar vida. E depois por lá ficar, não apenas passar por lá. Devemos criar condições para que se torne um hábito e o clube já só consiga, para estar bem consigo mesmo, viver nesse patamar, com gerações de talentos a sucederem-se umas às outras, continuando a obeceder às leis do mercado, mas sobrevivendo às mesmas, renascendo constantemente sob a mesma forma, a única forma que sempre caracterizou as maiores equipas da história do Benfica.
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