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Entrevista a Fernando Tavares

por Miguel Martins, em 20.12.15

 

Licenciado em Organização e Gestão de Empresas na Universidade Técnica de Lisboa-ISE, Fernando Tavares é, aos 55 anos, um nome de referência e apontado várias vezes como um dos nomes fortes para um dia ser Presidente do Sport Lisboa e Benfica. Já foi Vice-Presidente para as Modalidades do Benfica durante 5 anos, demitindo-se em Setembro de 2008. Durante um ano, foi também Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol. 

 

Um muito obrigado da nossa parte a Fernando Tavares por ter aceite o nosso convite para responder a várias perguntas colocadas por nós. Numa entrevista frontal e verdadeira como sempre habituou os Benfiquistas, fala do passado do Benfica, do presente e projeta o futuro.

 

 

 

Nas últimas eleições, encabeçou uma alternativa a Luís Filipe Vieira. Alternativa essa que conseguiu chumbar um R&C (Relatório e Contas). Curiosamente ou não, o Benfica após isso ganhou dois Campeonatos, uma Supertaça, uma Taça de Portugal e duas Taças da Liga. Considera que esse momento foi de viragem?

 

O chumbo do R&C em 2012 foi um movimento espontâneo dos sócios do Benfica que se mobilizaram no sentido de expressar, através daquele voto, a insatisfação vivida pela falta de resultados desportivos no futebol, para além das questões financeiras relacionadas com o aumento galopante do passivo e a discussão à volta do “milagre financeiro”. Aquele ato, não foi de todo organizado, nem os sócios se deixariam manipular ou instrumentalizar. Pensar assim, seria passar aos sócios um atestado de falta de sentido de clube, o que me parece não ser o caso. Creio mesmo que os sócios em condições normais não teriam chumbado o R&C. O documento foi apenas instrumental, ou seja, foi o pretexto para expressar um certo descontentamento. No entanto, não podemos esconder que aquela rejeição teve como objetivo criar um certo impulso para o aparecimento de uma alternativa. É assim que eu leio o momento vivido. Não foi a alternativa que chumbou o R&C, mas sim o contrário, no sentido em que o dito chumbo representou uma solicitação expressa por parte da maioria dos sócios presentes naquela AG para que emergisse uma alternativa credível. Dito de outra forma, os sócios presentes na AG fizeram a sua parte e passaram a mensagem para que nós fizéssemos a nossa. Foi um momento à Benfica, ou seja, foi como recuperar a tradição das velhas assembleias. Era impossível fugir daquela responsabilidade e ficar insensível ao movimento verificado que teve a sua expressão mais forte no chumbo do R&C. Ao longo das semanas seguintes fui testemunha da paixão clubística de todos os que travaram essa “batalha” desigual por novos caminhos. Surpreendeu-me o conhecimento que a juventude que apoiou a mudança tem sobre o Benfica e, acima de tudo, o sentido de clube e dos seus valores. A verdade é que essa expressão maioritária na AG não teve tradução nos resultados eleitorais.

 

No entanto, a candidatura de Rui Rangel teve uma outra expressão, escondida é certo, não conhecida publicamente, que se revelou absolutamente crítica para a decisão de avançar. Entre 2008 e 2012 formou-se uma certa oposição à atual liderança. No ano eleitoral e no contexto dessa oposição emergiu um movimento que defendia uma ação de aproximação à gestão de Luís Filipe Vieira no sentido da constituição de uma lista conjunta. O objetivo era, de certa forma, tentar influenciar e tomar o Benfica por dentro. Essa estratégia teve a oposição imediata de Rui Rangel e da minha parte. Na altura, ambos considerámos que as discrepâncias tinham que ser assumidas através de uma candidatura que desse corpo a uma nova alternativa. Infelizmente para alguns, o poder pelo poder falou mais alto e os princípios e os valores da ética ficaram dentro da gaveta.

 

Tenho pena que não tenha sido possível, em tão pouco tempo, passar a mensagem do programa eleitoral encabeçado por Rui Rangel. A equipa liderada pelo candidato tinha enormes valências e o programa estava muito bem estruturado. Com todo o respeito por todos os estilos de liderança, creio que o Benfica perdeu uma oportunidade para acomodar um estilo distinto de gestão, mais assente na construção da equipa, numa orgânica baseada num conceito de colégio (com decisões colegiadas) e menos centrada na figura presidencial, sem que isso significasse que o presidente perdesse os poderes estatutários. De qualquer das formas, fica a noção do dever cumprido face ao movimento de sócios que procurava uma solução distinta para comandar os destinos do Benfica, assim como a necessidade de afirmar uma oposição que se expressasse nas urnas e não em tentativas de golpes palacianos.  

 

É natural que estes movimentos acabem por obrigar quem gere a melhorar processos e decisões. Nesse sentido, creio que algum impacto indireto terá tido, embora os resultados obtidos são principalmente da responsabilidade de quem no momento geria o futebol do Benfica e a SAD.           

 

 

Apesar de já ter demonstrado o seu apoio a Rui Rangel e Bagão Félix, ponderaria votar em Luís Filipe Vieira em 2016, caso ele se recandidate? E porquê?

 

Primeiro não estou certo que Rui Rangel volte a recandidatar-se e que Bagão Félix esteja disponível para se candidatar. Em nome da pluralidade seria bom que se candidatassem. Não tenho dúvidas, qualquer deles seriam excelentes presidentes. Conheço ambos muito bem e posso testemunhar a seriedade, a competência e a paixão pelo Benfica. Não posso a esta distância das eleições e sem conhecer o pool de candidatos formar um sentido de voto. No entanto, não excluo nenhuma possibilidade, incluindo o voto em Luís Filipe Vieira.     

 

 

Contempla, algum dia, a hipótese de ser candidato à presidência? E se sim, contra Luís Filipe Vieira?

 

Não excluo a possibilidade de me candidatar a Presidente do Benfica embora tal não esteja no meu horizonte como um objetivo que me persiga diariamente. No entanto, é importante que se verifiquem sempre duas condições: 1) sentir que existe um movimento de apoio a uma potencial candidatura com condições ganhadoras, ou em alternativa condições de dever de consciência e de responsabilidade para marcar uma posição ou um sentido de rumo para o Benfica (como de certa forma se verificou no apoio a Rui Rangel); 2) ter condições financeiras e humanas de governabilidade. Só em condições extremas concorreria, neste momento, contra Luís Filipe Vieira.     

 

 

Em seu entender, quais foram até hoje os maiores erros e também valias da gestão de Luís Filipe Vieira?

 

Prefiro começar pelas mais valias. Luís Filipe Vieira devolveu a credibilidade ao Benfica. Eu sou testemunha. Quando tomei posse como Vice-Presidente responsável pelas modalidades em 2003 o clube não tinha qualquer tipo de credibilidade em matéria de cumprimento contratual. Recordo-me bem da dificuldade que tive para formar as equipas. O Benfica tinha uma reputação de incumprimento e os atletas e os treinadores recusavam-se a assinar pelo Benfica. Lembro-me de ter reunido com o advogado do Clube para fazer um levantamento dos incumprimentos que se arrastavam em tribunal. Cerca de 3 milhões de euros de dívidas a atletas e a treinadores. Uma parte significativa da dívida ainda resultava da equipa de ciclismo da gestão de Vale e Azevedo. Falei com cada credor individualmente, negociei uma redução da dívida e estabeleci planos de pagamento que cumprimos religiosamente. Todos sem exceção retiraram os processos que tinham em tribunal. Pela primeira vez e passados vários anos, alguém falava abertamente com os credores no sentido de resolver. Limpei integralmente o passivo em 12 meses e nessa altura contei com o apoio incondicional do Presidente e do Departamento Financeiro liderado pela Teresa Claudino. Uma financeira muito competente, afastada da primeira linha da agenda financeira da SAD e do Clube com o processo de profissionalização do Benfica. Na minha opinião uma perda para o Benfica. Estratégias de poder com as quais a determinada altura, e na defesa dos superiores interesses do Benfica, me incompatibilizei.

 

Luís Filipe Vieira sempre teve a visão de dotar o Benfica com as infraestruturas necessárias à prossecução de um objetivo desportivo: garantir a hegemonia desportiva. O estádio, os pavilhões, as piscinas e o Seixal são exemplos de uma visão clara de enriquecimento do património e acima de tudo da necessidade de dotar o Benfica com uma logística diferenciadora visando a excelência desportiva.

 

Outro aspeto positivo foi a profissionalização do Clube e da SAD, embora tal processo poderia ter sido implementado com profissionais Benfiquistas. Sempre disse e mantenho que, para determinado cargo, se posso contratar um benfiquista, não vou contratar um sportinguista, um portista ou um boavisteiro. No universo do Benfica, existem profissionais competentes que sem salários principescos aceitariam servir com paixão, motivação, excelência e profissionalismo o Benfica. Serei sempre um crítico dessa estratégia de contratação, mas ao longo deste percurso o Benfica fez excelentes contratações no campo técnico. Por exemplo, o Benfica hoje está dotado de uma excelente equipa de médicos e de fisioterapeutas, para além de outras funções ligadas ao treino e à deteção de talentos.

 

Outro trabalho muito meritório foi o desenvolvido no Seixal que permitiu o aparecimento de jovens jogadores com muito talento. Pena que alguns deles não tenham sido retidos durante mais tempo. Igualmente de assinalar o esforço feito pelo reforço e o crescimento competitivo das modalidades, assim como a criação da Fundação Benfica.              

 

Saliento como menos positivo uma estratégia com avanços e recuos em relação à política desportiva para o futebol e um aumento exagerado do passivo que agora nos obrigará a fazer uma contenção durante os próximos anos. Em determinamos momentos, contratámos jogadores sem qualidade para jogar no Benfica e desnacionalizámos completamente a equipa de futebol. No processo de contratação de profissionais já referi que discordo de contratar não benfiquistas e para além disso a estrutura parece-me muito pesada. Sempre fui defensor de estruturas muito mais leves, em nome da eficiência organizacional e da mitigação dos custos. Do ponto de vista do desenvolvimento organizacional nunca concentraria todos os poderes num único Administrador Executivo. É um tipo de modelo que convive bem com o erro e com os vícios de gestão. Eu separaria três áreas funcionais e nomearia para cada uma delas um Administrador: Desportiva, Financeira/Serviços e Marketing/Comercial. Por outro lado, discordo completamente de um modelo de governo em que a estrutura profissional se sobreponha aos Órgãos Eleitos. É possível profissionalizar sem ferir normas estatutárias básicas e princípios de boa convivência funcional.

 

 

Vê alguém dentro da estrutura do Benfica com competência suficiente para assumir o lugar de Presidente do Benfica?

 

Sinceramente não. A maior parte das pessoas que compõem os Órgãos Sociais do Benfica, com algumas exceções, não têm funções executivas e acabam por não conhecer bem o Clube por dentro, para além do Camarote Presidencial. Por outro lado, a exigência do lugar de Presidente obriga a um perfil que combine capacidades de gestão, conhecimentos desportivos e valências comportamentais, que eu sinceramente não descortino na atual estrutura.       

 

 

Bruno Carvalho já assumiu publicamente que vai ser candidato nas próximas eleições. Na sua opinião, ele é uma alternativa credível e forte?

 

Todas as alternativas são credíveis desde que os candidatos reúnam condições de elegibilidade. Havendo um debate sobre a legitimidade da candidatura de Bruno Carvalho, conduzida pelo condicionalismo dos 25 anos, e não sendo um especialista em direito, creio que do ponto de vista do direito administrativo, existem saídas que podem legitimar a sua candidatura, pelo facto de já ter sido candidato antes da revisão estatutária. E como já disse, em nome da pluralidade, todas as candidaturas são bem vindas. Conheço relativamente bem Bruno de Carvalho e creio que as suas intenções em relação ao Benfica são sérias, genuínas e conduzidas pelo seu sentido de responsabilidade. Tenho dúvidas que a sua candidatura possa reunir apoios necessários para realmente disputar a liderança. Temos igualmente que reconhecer que não é fácil concorrer contra Luís Filipe Vieira. No entanto, saúdo a sua iniciativa que tem certamente o meu apreço.      

 

 

Como vê o momento atual do Benfica, com os novos contratos assinados, e a promessa de eliminação do passivo? Acredita que essa promessa será cumprida?

 

Já tive oportunidade de escrever que o novo contrato com a NOS é importante para o Benfica. Não restam dúvidas que o Benfica organicamente, ou seja, com as receitas anuais correntes e extraordinárias provenientes da venda de jogadores, não conseguiria eliminar o passivo. Só com uma operação comercial com esta magnitude financeira, ou seja, inorganicamente, é que seria possível eliminar passivo e manter os níveis de competitividade da equipa de futebol. O Benfica estava estrangulado financeiramente e só acumulando operações financeiras seria possível dar resposta aos compromissos vencidos. Significa que globalmente este negócio é bem vindo e creio que necessário para a boa solvabilidade da SAD.

 

Fica claro que o investimento na BTV acabou por funcionar como uma estratégia de pressão comercial. A verdade é que o crescimento da BTV acabou por se revelar decisivo para que hoje a NOS pagasse pelos direitos aquilo que o Benfica sempre pretendeu, ou seja, 40 milhões por ano. Nesse sentido, o atual acordo é uma vitória comercial do Benfica. Podíamos dizer que se trata de uma inversão de estratégia mas na realidade creio que essa opção nunca esteve na mente de Luís Filipe Vieira porque seria incomportável para o Benfica manter e aumentar os níveis de investimento no canal para obter um retorno aceitável. A menos que o Benfica deixasse de ser um clube desportivo para ser um canal televisivo. E isso creio que os Benfiquistas não aceitariam. O retorno obtém-se por quem detém a especialidade técnica e acima de tudo a disponibilidade para fazer volumosos investimentos no seu "Core Business". Por outro lado, o Benfica percebeu que a BTV tinha atingido o seu limite de Peter quando concorreu pelos direitos da Liga dos Campeões e a UEFA não permitiu tal cedência.  

 

Diminuir o passivo é imperativo. Não creio que exista outra opção. Principalmente o passivo de curto prazo que deverá, neste momento, representar cerca de metade do passivo bancário. Obviamente como qualquer outra grande organização o Benfica não pode nem deve ter passivo zero. Existirá sempre passivo operacional, mas dentro de um desejável equilíbrio financeiro. Por outro lado, parte do passivo bancário, o que está relacionado com o estádio, poderá ser amortizado dentro do plano de pagamentos acordado, não havendo razões de fundo para antecipar pagamentos, até porque as respetivas taxas de juro são competitivas.    

 

 

O Benfica tem afirmado aos seus adeptos que, tem as suas finanças sólidas e é um clube estável. No entanto, todos os anos tem necessidade de vender os seus principais ativos e este ano optou por uma política de desinvestimento, comparativamente com anos anteriores. O que pensa desta situação e porque acha que foi tomada esta decisão?

 

O Benfica não podia continuar a investir sem critério na equipa de futebol. Por outro lado, era necessário dar sentido ao bom desenvolvimento do trabalho no Seixal. Trata-se de uma combinação de fatores que obrigam o Benfica a mudar de paradigma e à recuperação do modelo desportivo que teve sucesso entre os anos 60 e meados dos anos 90. Aposta no jogador português e critério na contratação do jogador estrangeiro.

 

 

Acredita que algum dia existiu o chamado “Milagre Financeiro”?

 

Claro que não. Tratou-se de uma manobra de propaganda. O que houve, como já expliquei anteriormente, foi uma recuperação da credibilidade institucional do Benfica. Para além disso, o aumento do passivo foi muito preocupante e é preciso explicar que parte do mesmo nem sequer resulta do investimento em património mas sim de decisões desportivas. 

 

 

Acha que a venda dos direitos televisivos à NOS por 400 milhões de euros foi realmente um bom negócio?

 

Na minha opinião sim como expliquei anteriormente embora me preocupe o facto de não existir uma cláusula de saída unilateral.

 

 

Vê com bons olhos que, caso se confirme, os jogos do Benfica em casa sejam transmitidos pela Sport TV?

 

Não vejo que exista problema a não ser o facto de perder a autonomia em relação aos horários dos jogos. Sobre preocupações passadas temos que reconhecer que o acordo foi assinado com a NOS e não com a Olivedesportos. Para além disso, hoje a relação de forças dos protagonistas é bem diferente daquela que vivemos no passado.   

 

 

É a favor ou contra a venda do Naming do Estádio?

 

Tenho que reconhecer ter alguma dificuldade em aceitar. Mas hoje as exigências financeiras são tremendas e o Benfica tem que capitalizar os seus proveitos para poder ser competitivo. Para mim o Estádio será sempre o da Luz.  

 

 

Recentemente, quer no futebol, quer nas modalidades, o Sport Lisboa e Benfica tem sido bem sucedido. Apesar de tudo, nas modalidades, parece imperar um rumo mais consciente, preciso e funcional. Os resultados positivos são frutos dum trabalho pensado, bem elaborado e ciente das necessidades. Acha que o futebol, no plano de vista desportivo, tinha alguma coisa a aprender com as modalidades?

 

Antes de ter tido responsabilidades no Benfica considerava que as modalidades faziam parte do código genético do Benfica e em nome da tradição era absolutamente crítico mantê-las. Hoje penso que para além disso é necessário manter as modalidades porque através das mesmas podemos ter um futebol mais forte. Do ponto de vista das tecnologias do treino e do desenvolvimento da alta competição, o futebol tem andado atrás de muitas das modalidades. Poderia dar inúmeros exemplos, mas darei apenas um. O scouting, hoje instrumento fundamental no futebol, desenvolveu-se no basquetebol há mais de 40 anos. Normalmente os treinadores das modalidades são muito qualificados e meticulosos. Isso ajuda muito a centrar a agenda desportiva e o respetivo rumo.       

 

 

Sendo o maior clube português, com melhores condições a todos os níveis, o que acha que falta ao Benfica para obter uma completa "hegemonia" interna? Ou ganhar com mais regularidade? É demérito nosso ou mérito de terceiros?

 

Bom, nas modalidades essa sustentabilidade é claramente possível. No caso do futebol temos que aguardar pelos resultados desta nova estratégia desportiva.

 

 

Há algum clube ou projeto que siga como exemplo ou use como referência?

 

Não em particular, embora reconheça méritos elevados no modelo de formação do Ajax e a sua articulação com o desporto escolar. Dos modelos mais completos que estudei, embora não tenha sido possível uma afirmação a nível europeu um pouco resultante de ser, como Portugal, um mercado de poucos milhões. Creio que o Benfica tem características muito particulares. Resta-nos refletir sobre os fatores de sucesso do passado e extrapolar a agenda para os dias de hoje. É possível nacionalizar mais a equipa de futebol e ser competitivo como demonstrámos durante três décadas. 

 

 

Acredita que num prazo de 5 anos, o Benfica possa afirmar-se como um clube Top 10 europeu? Qual pensa ser a melhor estratégia para lá chegar?

 

É possível. Já provámos que é possível formar dos melhores jogadores da Europa. Não podemos viver apenas da formação mas também não devemos contratar indiscriminadamente. Ser seletivo como no passado glorioso ao nível da contratação de jogadores estrangeiros. Pagando parte do passivo mais oneroso e possível libertar mais receitas às quais se devem adicionar as mais valias resultantes dos novos contratos. As regras de fair play financeiro ajudarão a equilibrar a competitividade. Os clubes com orçamentos mais elevados são altamente despesistas ao nível da contratação. Não será necessário gastar a esse nível para ser competitivo. Fundamental anualmente conseguir boas campanhas na Liga dos Campeões que permitam igualmente a otimização das receitas. A minha dúvida é de que forma podemos acelerar a prossecução desse objetivo face ao processo de transição que estamos a viver. As indicações, por agora, não são muito favoráveis, ou seja, uma vez mais, o desafio não está, a meu ver, na mudança de paradigma, mas mais no protagonista (treinador) que tem que a gerir. É natural que uma transformação com este calibre obrigue a uma aposta com, eu diria, um “músculo” superior. Aliás, a história do Benfica assim o demonstra. Transformar sim, mas com grandes treinadores.

         

 

O que pensa do papel de Rui Costa? Crê que deveria ter mais poder de decisão?

 

Aí está uma questão difícil. Não consigo entender o dá e o tira na relação entre a liderança e o Rui Costa ao longo dos anos. Eu teria preferido dar responsabilidades adequadas e crescentes na sua complexidade e âmbito ao Rui Costa. O crescimento profissional faz-se fazendo, dia a dia, projeto a projeto. Por mim, Rui Costa teria hoje mais responsabilidades, mas eu não teria dado tantas responsabilidades quando iniciou as suas funções como gestor para o futebol.      

 

 

Jorge Mendes tem um papel muito importante no futebol do Benfica. Todos os anos assistimos a inúmeros negócios entre o Benfica e o empresário português. Qual a sua opinião sobre isso? Dependemos demasiado dele?

 

Creio que sim. Temos que reconhecer que proporcionou excelentes negócios. No entanto, algumas vezes tivemos que pagar esses favores com contratações discutíveis. O saldo é claramente positivo embora considere que o Benfica devia diversificar um pouco mais a relação com os agentes. Jorge Mendes pela posição que ocupa na indústria pode dar vantagens competitivas face à sua capacidade para chegar a qualquer clube. Não creio que a sua ação seja igualmente positiva para jogadores que não sejam de primeira linha. Significa que o seu trabalho acaba por ser muito seletivo. Neste área funcional, o Benfica deveria ter alguém especializado para posicionar outros jogadores no mercado, fazer o marketing dos seus ativos junto de potenciais clubes compradores, fazer o seguimento dos jogadores emprestados, assim como ajudar o Benfica a criar as condições para o êxito das contratações de jogadores talentosos, ou seja, assegurar uma espécie de diplomacia desportiva.      

 

 

Cada vez aparecem mais jogadores oriundos da formação e com mais qualidade. Pensa que estamos a trabalhar bem a formação ou ainda há muito para melhorar?

 

Penso que estamos no bom caminho. Os resultados são muito evidentes. A questão coloca-se ao nível da integração dos jogadores na primeira equipa e de que forma isso será possível sem envolver por época desportiva muitos jogadores.

 

 

Concorda com a ideia de que o insucesso até agora na época se deve a uma aposta na formação e desinvestimento?

 

Em parte. Não explica tudo, a meu ver. Mesmo assim, a equipa deveria render mais, apresentar um fio de jogo e crescer de jogo para jogo. 

 

 

Quem foi o principal culpado na saída de um treinador bicampeão? O próprio treinador ou Luís Filipe Vieira?

 

Para mim é claro que o Benfica pretendeu fazer uma aposta diferente. A forma como o Presidente do Benfica geriu a renovação do contrato, foi um convite a um impulso do treinador para abandonar. Jesus podia ter assinado? Talvez. Mas ceio que o treinador percebeu que não era desejado. Dito isto, não estou a afirmar que estaria de acordo com a manutenção do treinador.    

 

 

Nos últimos largos anos, apenas com Jorge Jesus a treinador, Luís Filipe Vieira conseguiu ganhar. A estrutura do Benfica existe mesmo, ou a estrutura era Jorge Jesus?

 

Depende do que se entende por estrutura. Creio que há um tipo de estrutura que se mantém inalterável e como já aqui disse o Benfica tem pessoas muito qualificadas em diversas áreas funcionais do futebol que não se podem confundir com o papel que Jorge Jesus teve no Benfica. No entanto, há um tipo de estrutura, mais ligado à equipa principal e não tanto de retaguarda, em que Jorge Jesus, pelo seu perfil, exercia uma influência enorme. Creio que nesse campo, a estrutura era mais Jesus e com a sua saída criou-se um vazio, que a meu ver está a ser ocupado de uma forma pouco estruturada. Dou um exemplo. Jorge Jesus pode falar com erros gramaticais e de uma forma grosseira, mas a mensagem passa. No entanto, podemos falar muito bem e a mensagem não passa.      

 

 

Rui Vitória, foi inequivocamente, uma escolha de Luís Filipe Vieira. O que acha dessa decisão?

 

Penso que sim. Luís Filipe Vieira viu em Rui Vitória o treinador para mudar o paradigma do futebol. Uma maior aposta no Seixal. O treinador tinha tido sucesso no Guimarães com esse modelo e conhecia o Benfica. O problema é que o Benfica tem outras exigências e um impacto mediático enorme. Na minha modesta opinião esse ângulo da decisão poderia ter sido mais bem ponderado face a outras alternativas.  Creio que o desafio que se coloca hoje a Luís Filipe Vieira não é tanto a saída de Jesus mas sim se o seu substituto estará à altura do desafio.   

 

 

Seria Rui Vitória a sua escolha para treinar o Benfica?

 

Não pretendo ser indelicado para o treinador do Benfica. Enquanto treinador terá sempre o meu apoio como sócio e adepto. Mas em nome da minha consciência e do respeito que devo aos sócios que solicitaram esta entrevista, assim como o respeito e a lealdade que devo ao Clube do meu coração, tenho que responder que não. Isso não significa que não lhe reconheça méritos e desempenhos bem conseguidos até ao momento.

 

Eu teria ponderado entre três perfis distintos de treinadores: 1) Aposta num treinador emergente do tipo Rui Vitória, Marco Silva ou Paulo Fonseca e neste campo creio que Marco Silva poderia ser a melhor opção, mas condicionaria sempre a decisão final a um conhecimento detalhado sobre o treinador. A minha intuição por Marco Silva é conduzida pelo trabalho feito no Estoril (que eu acompanhei de perto) e no rival. Particularmente no rival, porque apesar de ter a estrutura contra si e os resultados não terem aparecido (acabou por ganhar uma Taça de Portugal), teve sempre os jogadores com ele e manteve sempre um discurso estruturado e nunca perdeu os papeis; 2) Aposta num treinador português com mais experiência e aí a minha opção cairia em Vítor Pereira. Não pretendo ser polémico mas Vítor Pereira nunca caiu no discurso fácil de dizer que em Portugal só no Porto. Trata-se de um treinador muito bem equipado tecnicamente e para mal dos nossos pecados criou uma ascendência em relação ao Jesus no confronto direto; 3) Aposta num treinador estrangeiro capaz, do ponto de vista da construção da equipa, de assumir um equilíbrio entre o jogador experiente e o jogador da formação. Aqui a minha escolha poderia recair entre Jurgen Kloop e Lucien Favre, sendo que a minha primeira opção seria o treinador alemão. Fico-me por aqui e apenas para explicar o processo de decisão que seguiria.

 

 

Depois de um mau começo de época, apesar da campanha na Liga dos Campeões, acha que o presidente irá segurar o treinador, mesmo que a época tenha um mau desfecho?

 

Não me parece que Luís Filipe Vieira deixe de o fazer a menos que os resultados sejam uma verdadeira catástrofe e o próprio treinador resolva sair pelo seu próprio pé.    

 

 

Como classifica o trabalho de Rui Vitória até ao momento?

 

Sofrível com alguns pontos altos. Embora reconheça a sua coragem e perspicácia para lançar jovens jogadores com êxito, assim como a qualificação para os oitavos da Liga dos Campeões. Creio que Rui Vitória pode igualmente melhorar a sua comunicação principalmente nas análises após os jogos que me parecem por vezes muito genéricas e com pouca substância. Não apreciei que tivesse permitido que o jovem Gonçalo Guedes tivesse dado a cara após a eliminação da Taça de Portugal contra o Sporting e ainda por cima para atuar como mensageiro. Estes são os momentos  para afirmar a liderança e garantir que um jogador mais experiente, um dos capitães, desse a cara.      

 

 

É o principal culpado de uma época onde estamos claramente aquém das expectativas?

 

Não pode ser considerado o único culpado. Uma pré-época desadequada e uma equipa com fragilidades nalgumas posições explicam parte do problema. Apesar da mudança de paradigma a equipa devia render mais e devia ser mais consistente no seu modelo de jogo. 

 

 

Pensa que foi cumprida a promessa de que Rui Vitória ia ter as mesmas condições que outros tiveram?

 

Não me parece. A equipa tem fragilidades e o tipo de contratações afastou-se em termos de qualidade dos anos anteriores. Embora não se deva subestimar totalmente as contratações feitas, nem o dinheiro investido, apesar de algumas delas não estarem a resultar, por falta de adaptação, por falta de oportunidades dadas aos jogadores ou mesmo por falta de qualidade.      

 

 

Acha que os espetáculos semanais proporcionados por dirigentes e presidentes, levantando polémica atrás de polémica, aumentando inclusive um clima de tensão entre clubes e adeptos, é positivo para o desporto?

 

Os dirigentes têm que entender que os clubes são sócios do mesmo negócio e que fora do campo têm interesses comuns. Competir sim, mas dentro do campo. Por vezes a emoção da competição e a pressão dos resultados levam os dirigentes a passar dos limites. Eu próprio como dirigente cometi exageros nessa matéria. 

 

 

Que acha de existirem membros da direção do Benfica em programas que nada promovem o debate futebolístico?

 

Várias vezes dei a minha opinião sobre este assunto. A participação de benfiquistas nesse tipo de programas deve ser muito bem pensada. Jamais concordarei com a participação de dirigentes ou profissionais do Clube nesses programas, principalmente quando fazem figuras e protagonizam comportamentos que não dignificam os valores, a história e os fundadores do Benfica. 

 

 

No Benfica, há espaço para o crescimento nas modalidades? Acha possível que essas tenham outro protagonismo, até fruto de boas campanhas europeias? E já agora, que espaço acha que deveríamos almejar nesse espaço europeu.

 

Há sempre espaço para crescer. Creio que o desafio que se coloca às modalidades prende-se mais com o modelo de desenvolvimento da formação. De que forma é possível alimentar as primeiras equipas com jogadores da formação? Estes processos requerem momentos de transição que podem sacrificar campeonatos. No entanto, quando se atinge o ponto ideal, a renovação das equipas faz-se de uma forma natural e gradual. Se o Benfica conseguir isso, atingirá a excelência desportiva. Mas muitas das vezes o Benfica não aproveita o contexto para assumir essa mudança de paradigma. Por exemplo, o Benfica não está a aproveitar o contexto menos competitivo no basquetebol para assumir um novo rumo. Aqui está um bom exemplo onde seria possível a uma maior aposta na formação sem que isso significasse necessariamente perder campeonatos. Por outro lado, é preciso entender a realidade de cada modalidade. Por exemplo no caso do voleibol não temos muitos jovens praticantes em Lisboa. A modalidade está muito centralizada no norte. Seria difícil assumir neste caso uma mudança de paradigma a menos que o Benfica estivesse preparado para investir seriamente no crescimento da modalidade nas escolas lisboetas. Seria necessário investir bastante e esperar entre 8 a 12 anos para obter resultados. Sendo assim, fará mais sentido que os outros formem e o Benfica contrate.

 

No campo europeu temos claras ambições no hóquei e no futsal. O voleibol encontrou um certo equilíbrio. No andebol e no basquetebol seriam necessários investimentos volumosos para competir a um nível elevado.          

 

 

Tendo estado ligado às modalidades do Benfica, como as vê atualmente? Que acha em concreto da situação do Andebol?

 

O Benfica pode sustentar durante muitos anos uma posição de hegemonia nas modalidades. O Benfica tem feito um esforço significativo para manter as modalidades e sua competitividade. É curioso pensar que internamente e enquanto responsável pelas modalidades fui muitas das vezes acusado de despesista. A verdade é que hoje o Benfica gasta o dobro com as modalidades e os campeonatos são muito menos competitivos quando comparados com os tempos da minha gestão. Saúdo essa aposta.

 

O andebol teima em acertar o passo e parece ser a modalidade com mais dificuldade em atingir a hegemonia. O andebol tem a particularidade de contar com os três grandes e isso torna a competição mais acesa. Por outro lado, o FC Porto leva muitos anos de avanço no desenvolvimento desportivo de um modelo que assenta na formação e no desporto escolar. O FC Porto aumentou a sua massa crítica e tem uma fonte de jogadores inesgotável. Para isso contribui o seu diretor técnico que é o treinador mais qualificado em Portugal. O andebol tem uma forte penetração no desporto escolar. O rumo passa, na minha opinião, muito por aí mas é necessário aguardar pelos resultados.        

 

 

Como vê a perda de identidade da secção de futsal no que toca a um menor número de jogadores de topo portugueses, comparando com o passado (Ricardinho, Costinha, Arnaldo, Joel, etc)? Acha possível uma nova conquista portuguesa na UEFA Futsal Cup?

 

Uma geração de jogadores invulgares. O balneário mais forte que eu conheci. Nem sempre é possível fazer coincidir tanto talento português. O Benfica não foi capaz de assegurar uma transição que permitisse manter aquele perfil de talento português. Há duas explicações para isso: 1) saída prematura do André Lima que tinha todas as condições para gerir essa transição (o André tinha ideias claras sobre o que fazer e quando fazer) e 2) não foi feita uma aposta atempada na formação que permitisse alimentar a primeira equipa de uma forma sustentada. Creio que temos condições para vencer de novo a UEFA CUP.

   

 

Que modalidades faltam ao Benfica? Acha possível por exemplo o regresso ao ciclismo?

 

Na minha gestão recuperei o ciclismo através de um acordo com a João Lagos Sport. Fi-lo por considerar estratégico e porque o ciclismo foi crucial para a dimensão nacional do clube. Na altura o Benfica não tinha condições financeiras para suportar o custo de uma equipa. Foi necessário encontrar um parceiro. Infelizmente e já depois da minha saída a parceria caiu, creio que por razões financeiras que são públicas e que afetaram fortemente o nosso parceiro. O Benfica deveria procurar uma nova parceria uma vez que um orçamento mínimo para a modalidade deverá andar à volta de 3 milhões de euros no mínimo, isto com ambições internacionais. Se for apenas para correr nacionalmente, 1 milhão deve chegar. Para além do ciclismo, o Benfica devia reforçar aposta no rugby. Trata-se da modalidade, neste momento, com maior o crescimento a nível mundial (claramente a modalidade do século vinte e um) e com uma forte penetração nos jovens. Por outro lado, tem valores comportamentais que se enquadram no espírito do Benfica.

    

 

O Benfica sempre inovou muito em várias decisões e a sua participação em qualquer modalidade, faz logo com que ela tenha outra visibilidade. Acha que é altura de se criar uma equipa de futebol sénior feminino? 

 

Penso que sim. O Benfica tem uma responsabilidade desportiva que advém da sua dimensão. Veja-se a explosão verificada no futsal com a entrada do Benfica. Seria um impulso extraordinário para o futebol feminino. Passaria uma mensagem de diversidade e atrairia mais público e adeptos femininos.

 

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publicado às 20:49


4 comentários

De Rusty Ryan a 21.12.2015 às 21:30

Parabéns por esta entrevista.
Pelo final, fiquei sem perceber se vai ter ou não continuação.
Penso que muitos Benfiquistas vai ficar contentes em ler as declarações de Fernando Tavares, pessoa que aprecio particularmente.
Obrigado.

Saudações.

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